Dos anos 1930 aos 1970, árabes de SP celebravam Carnaval de rua no centro

Por blog alalaô

JULIANA GRAGNANI
DE SÃO PAULO

 

Um menino pequeno observa, na altura dos joelhos dos corpos na multidão, a poeira que sobe cada vez que aqueles árabes batem os pés no solo. Pá, pá, pá, várias vezes os pés encostam no chão, os homens pulam: é Carnaval.

Era um costume em São Paulo. Imigrantes árabes e seus filhos se reuniam no largo São Bento, no centro, para celebrar o feriado à moda oriental. A história, sobre a qual há poucos registros (nenhuma imagem foi encontrada), se preserva pela memória de famílias árabes, que relatam ter frequentado a festa de rua entre os anos 1930 e 1970.

Naquela época, a tradição carnavalesca em São Paulo era formada pelos cordões, que tomavam as ruas —o movimento foi visto com mais força no Carnaval deste ano, com os blocos de rua. Neste final de semana, há mais desfiles em SP (veja ao lado).

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“O bochicho era no largo São Bento e na rua Direita”, lembra o advogado Krikor Tcherkesian, 77, de origem armênia —sua tia morava na ladeira Porto Geral, via inclinada que atravessa a rua 25 de Março. Os árabes ocupavam essa região, onde hoje se concentram vendas de fantasias.

“Chegaram como mascates e aos poucos começaram a fixar lojas. Formavam ali uma miniatura dos grandes mercados árabes, vendendo roupas, alimentos, tecidos, tudo misturado, de sírios, libaneses e palestinos”, afirma o pesquisador brasileiro-libanês Roberto Khatlab. Os comerciantes, diz, moravam nos fundos ou no primeiro andar das lojas, falando árabe entre si.

“Como era perto, adotaram o largo como ponto para brincarem e dançarem”, diz Tcherkesian. “O público todo parava, nunca tinha visto aquilo. Formava um oba-oba sem tamanho. Para os brasileiros, era um negócio espetacular, a batida, o jeito de dançar”, conta, emocionado.

O ritual nasceu pequeno, com cerca de 20 a 30 homens bebendo arak —espécie de cachaça deles—, praticando o dabke —dança folclórica árabe executada em círculo ou em linha, de mãos dadas—, e tocando flautas, pandeiros, alaúdes, tamborins e derbakes. Depois, cresceu. Na década de 1950, cerca de 300 pessoas participavam da festa, segundo espectadores.

SAUDADES DA TERRA

“Meu pai não queria me deixar ir, mas sempre fui muito atrevida”, conta Thereza Isper Saad, 86, que frequentou a roda entre os oito e dez anos, nos anos 1940. “Era lindo, não era ensaiado. Eles transmitiam as saudades da terra.”

Segundo Saad, homens dançavam, enquanto mulheres e crianças assistiam.

Para Samira Adel Osman, professora de história da Ásia da Unifesp, aquela era uma forma de os árabes manterem suas raízes, estratégia usada hoje em outros países para onde se mudam. “Em Istambul, grupos de refugiados sírios se reúnem para fazer igual, dançar dabke”, diz.

Às vezes, na roda dos árabes no largo São Bento, um cordão de samba passava ao redor, e os sons se misturavam, recorda-se Jorge Tadeu Kulaif, 68. Ele diz ter frequentado a festa aos oito anos, na época em que seu pai tinha uma loja de tecidos na 25 de Março. “Começava à tarde e ia até de madrugada.”

O advogado Rezkalla Tuma, 87, irmão do senador Romeu Tuma (1931-2010), canta, em árabe, uma das músicas de nostalgia entoadas naquelas rodas: “Ligue para mim, ligue para mim, pelo menos uma vez por dia, pelo amor de Deus, pelo amor de Deus”.

Para o pesquisador Khatlab, há similaridades entre a música árabe e a brasileira, ambas com pandeiros e tambores. “O espírito dos árabes é fazer festa. Há muita música e dança, assim como no Brasil. Assim, se adaptaram.”

Com a integração dos árabes, o Carnaval no largo São Bento se perdeu. A tradição, agora incorporando elementos brasileiros, passou nos anos 1960 para clubes como o sírio Homs, na av. Paulista.
Em 2016, o Carnaval árabe ganhou outra cara, a dos refugiados. No feriado, sírios e palestinos uniram o “espírito festeiro de brasileiros e árabes” em uma festa no centro de SP.